Monday, November 13, 2006

opinião

A festa e os festejos
[editorial do suplemento "Coimbra 2003: e depois da festa?", publicado com o Diário de Coimbra de 24 de Janeiro de 2004]

Há duas formas essenciais de olhar para a produção e programação culturais da cidade de Coimbra: apreciar a quantidade e qualidade de espectáculos disponíveis ou descortinar, entre a imensa oferta, uma ideia estratégica de médio-longo prazo virada para a afirmação da cidade como pólo cultural de referência.
A primeira atitude é a do cidadão-consumidor de espectáculos que apenas quer ter acesso ao maior número de eventos que lhe interessam, independentemente do local onde ocorram, sem quaisquer preocupações de ligação à vida da cidade e às suas estruturas de produção artística. Tal comportamento visa a realização de um interesse imediato e individual, com a mesma despreocupação do consumidor-voyeurista que julga ver a imagem do progresso e do dinamismo quando passa e olha para as zonas industriais.
A segunda atitude remete para o conceito de espectador-cidadão. Isto é, já não basta que o evento em causa agrade. É preciso que a respectiva programação, ou seja, que as políticas culturais da cidade, tenham em mente horizontes mais vastos, cuja ambição não se esgote nos aplausos finais de cada espectáculo. No fundo, trata-se de distinguir a festa dos festejos.
Qual dos dois objectivos cumpriu a Coimbra Capital Nacional da Cultura? Ou, dito de outra maneira, de que forma é que a CCNC contribuiu para a elevação dos níveis de exigência dos públicos? E qual o lastro cultural que fica depois de desmontada a festa? Estas são questões que nos dizem directamente respeito a nós, que aqui vivemos, pois há outras, igualmente relevantes, que têm a ver com o modo tutelar e paternalista como o País e as instituições fora de Lisboa são tratadas pelos diversos centro de poder.
A ausência de autonomia administrativa e o modelo de organização constituem dois exemplos soberanos do tal “presente envenenado”, de que fala João Maria André. Daí, que seja tão importante denunciar essas situações, para que elas não se repitam, como ser cauteloso e cirúrgico nas críticas, realçando as suas virtualidades e discutindo o seu impacte efectivo no desenvolvimento cultural das cidades
É verdade que nunca Coimbra teve uma oferta cultural como em 2003. Mas esgotada a programação, o que é que resta? Para o futuro vai ficar pouca coisa. Salvo se a experiência nos tiver servido de lição. João Gouveia Monteiro, salienta a “grande falta de coordenação das actividades culturais”, Celeste Amaro lamenta que “em 10 anos Coimbra tenha sido a única capital de distrito que não avançou para a construção de um teatro” e João Maria André alerta para a enorme “falta de informação e algum desinteresse sobre os eventos que se promovem”. Vítor Hugo Salgado entende que “Coimbra está relativamente atrasada no âmbito cultural”, enquanto Abílio Hernandez defende que terá de “haver compromissos do ponto de vista da cidade, no sentido de que as coisas não voltem a um ponto igual ou pior do que o ponto de onde se partiu”.
É justamente a partir deste ponto que a questão e o debate para o próximos tempos tem de se situar, sob pena de a CCNC não ter passado, afinal, de um mero epifenómeno na história cultural de Coimbra. A cidade está colocada perante um repto decisivo ao seu desenvolvimento, razão pela qual o debate quere-se plural e feito com carácter de urgência. O primeiro passo começa com a resposta a quatro perguntas: Quais são os agentes da cidade dispostos a participar na definição e concretização de uma estratégia cultural e artística contemporânea? Quais as condições que têm para desempenhar esse papel? Que objectivos e responsabilidades estão as entidades locais e nacionais dispostas a assumir daqui para a frente? Que ideias têm e que projectos defendem?
A responsabilidade do que não se mudar e não se fizer será, futuramente, de toda a comunidade: dos cidadãos que não souberem exigir e das entidades que se alhearem das suas obrigações e deveres.
Pela nossa parte, manifestamos, desde já, toda a disponibilidade para sermos parte da solução do complexo problema que se coloca à cidade, cujos efeitos vão muito para além das suas fronteiras. Porque os públicos-alvo de Coimbra, hoje, também moram em Viseu, Leiria, Aveiro, Figueira da Foz, Guarda, Águeda ou Pombal.
Mas se em vez de um problema olharmos para esta questão como um desafio estratégico, uma espécie de desígnio supra-municipal, nessa altura estaremos a construir algo bastante mais sólido e perene do que um mero programa de espectáculos.
Nesse dia, a cidade terá capacidade para fixar os seus melhores artistas, poderá afirmar-se como pólo de produção cultural de referência e passar a fazer parte dos circuitos internacionais de cultura.
Até lá, no entanto, será necessário desbravar muito caminho numa cidade que se anuncia do Conhecimento, mas que continua carenciada de um centro cultural de excelência e que ainda encara com um misto de desconfiança e paternalismo as estruturas de criação artísticas profissionais aqui sediadas.

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