Monday, November 13, 2006

opinião

A tentação do efémero
[Outubro de 2004]

A programação e a animação cultural da cidade de Coimbra têm sido marcadas, nos últimos tempos, por um grande número de eventos pontuais, em diversas áreas e de dimensão e ambição muito variáveis – o Festival 10 de Junho (que se esgotou na primeira edição), os concertos estivais no Jardim da Sereia, as óperas no Pátio das Escolas, o concerto dos Rolling Stones, o Festival de Pirotecnia, o Coimbra Dança, o Festival de Gaiteiros, entre tantos outros.
Independentemente da qualidade e do interesse cultural de cada uma destas iniciativas, que haverá que avaliar em cada caso concreto, interessa-nos discutir a tendência crescente para a aposta neste tipo de eventos por parte do actual executivo da Câmara Municipal de Coimbra. Este debate é especialmente importante num contexto em que os principais agentes culturais da cidade, tanto na área da criação como da programação, estão longe de ter alcançado um patamar mínimo de estabilidade para desenvolver o seu trabalho e continuam a ter enormes dificuldades até para receber atempadamente os financiamentos protocolados com a autarquia.
Trata-se, em nosso entender, de uma estratégia de vistas curtas, realizada a pensar mais na espectacularidade do momento do que na construção de uma política sustentada de desenvolvimento cultural a médio prazo.
Não é dificil reconhecer que estes eventos, pelo seu carácter excepcional e festivo e pelo mediatismo que os envolve, podem ser especialmente atractivos para públicos e eventuais financiadores. Mas estão por demonstrar os efeitos dessa atracção pontual na consolidação de correntes de público regulares ou na agilização de parcerias estáveis entre criadores, mecenas e autarquias. Pelo contrário, e sobretudo quando são planificados ou concretizados sem qualquer ligação à realidade cultural da comunidade, acabam por funcionar numa lógica concorrencial aos agentes, aos projectos e às iniciativas culturais locais.
Apetecíveis aos decisores políticos por serem vendidos como produto acabado, sem implicar outros compromissos para além da emissão de um cheque, estes eventos são também, do ponto de vista da mera racionalidade económica, pouco sustentáveis. Na maior parte dos casos, eles implicam a concepção, construção e montagem de estruturas (efémeras) propositadamente para o efeito, implicam significativos gastos de deslocação e alojamento e a constituição de equipas técnicas e de produção para cada um deles, implicam pacotes publicitários específicos, acabando por não rentabilizar os recursos e o know-how existentes na cidade.
A opção por centrar a estratégia cultural neste tipo de acontecimentos justifica-se em vilas ou cidades onde o tecido cultural é ainda incipiente e é absolutamente fundamental promover o contacto da população com as diferentes formas artísticas, alargando o leque de alternativas e colocando à disposição do público espectáculos e iniciativas às quais, de outra forma, não teriam acesso. Estão nesta situação a maior parte das localidades portuguesas onde não existem estruturas profissionais de criação ou programação artística e cujos calendários culturais anuais se esgotam em festivais, mostras, encontros ou outros eventos do género.
Esta opção poderá igualmente justificar-se em cidades que estão no extremo oposto, com um leque de agentes culturais bem estruturado e consolidado, assumindo aí um carácter claramente complementar, em áreas marginais ou com o propósito explícito de acolher criações internacionais. Talvez Lisboa, no contexto português, se aproxime desta realidade.
Para o bem e para o mal, Coimbra não se situa em nenhum destes casos. Por um lado, tem estruturas de criação artística próprias, tem equipamentos habilitados para a realização de uma programação regular durante todo o ano, tem correntes de público já criadas. Por outro lado, no entanto, apresenta um tecido cultural ainda frágil e vulnerável, tanto ao nível da oferta como da procura: as estruturas de criação mantêm-se ao nível da mera sobrevivência, os equipamentos surgem a um ritmo incompreensivelmente lento e sem que se vislumbrem estratégias de gestão e programação consistentes, continua a saber-se demasiado pouco sobre os públicos da cultura na cidade e na região e as iniciativas de sensibilização e de captação de novos espectadores são escassas e desarticuladas.
Há naturalmente espaço para que Coimbra acolha e promova a realização de festivais e eventos extraordinários. Assim eles tragam algo de novo à cidade, contribuam para a sua distinção no contexto nacional e internacional e rentabilizem os recursos humanos, artísticos, técnicos e materiais aqui existentes nas diferentes áreas artísticas, ao invés de se limitarem a importar fórmulas gastas e copiadas de outros locais. O que não nos parece é que isso deva ser o elemento central da estratégia de desenvolvimento cultural, numa fase em que a crise económica e a necessidade de contenção orçamental servem de álibi para a asfixia dos agentes culturais de Coimbra.
Retornamos, pois, às velhas distinções entre forma e conteúdo, entre o efémero e o duradouro, entre o fugaz e o consistente, entre as vistas curtas e a visão estratégica. É já claro que a Capital da Cultura não foi aproveitada para clarificar estas dicotomias. Pelo contrário, com a proliferação de “primeiros festivais” incluídos na sua programação (dos quais muito poucos tinham assegurada qualquer hipótese de continuidade), ela foi uma espécie de mãe de todos os festivais, deixando como herança – e, sobretudo, legitimando – esta forma de fazer cultura.
O que está em causa nem é tanto o acolhimento desta ou daquela iniciativa, mesmo quando cada uma delas absorve tanto ou mais que o investimento anual da Câmara Municipal nas estruturas da cidade. Preocupa-nos sobretudo o facto de não serem perceptíveis os critérios subjacentes às escolhas efectuadas, bem como a circunstância de estas – tratadas de uma forma avulsa e descoordenada –, não se enquadrarem em nenhuma estratégia ou política cultural para a cidade, que continuamos a não descortinar e cuja inexistência não é disfarçável com fogachos de ocasião.
Tal como afirmámos há alguns meses atrás, na sequência do debate “Coimbra 2003: e depois da festa?”, acreditamos que a cidade merece a definição de uma estratégia de desenvolvimento cultural, assente em cinco pilares essenciais: formação; recuperação e valorização do vasto património que a distingue nacional e internacionalmente; criação de equipamentos culturais qualificados (prevendo atempadamente os respectivos programas de ocupação e gestão); criação de condições de estabilidade para as estruturas profissionais de criação e programação; articulação e diálogo permanente entre poderes públicos, sector privado e agentes culturais, numa perspectiva cooperante e de complementaridade.
A organização de eventos pontuais de média ou grande escala pode naturalmente fazer parte desta estratégia: pode servir para dinamizar áreas deficitárias ao nível da produção artística na cidade, pode sensibilizar, captar e fidelizar novos públicos, pode permitir o acolhimento de espectáculos e artistas que de outra forma não passariam por Coimbra, pode dinamizar o funcionamento de redes (nacionais e internacionais), nas quais Coimbra participe de uma forma activa. Mas é fundamental considerar esta vertente da política cultural como parte de um todo integrado e coerente, sem cair na tentação de nos limitarmos a ela. A não ser assim, como infelizmente tem sido o caso, ficamo-nos somente pela festa – fugaz, efémera e cara, ainda por cima.
Trata-se de escolher a cidade que queremos. Podemos ser uma cidade criativa, onde os agentes culturais aqui sediados têm condições para desenvolver o seu trabalho e imprimir dinamismo (cultural e económico), onde se cria um mercado sustentado, aberto a novas propostas e novos projectos, onde os diferentes públicos têm à sua disposição diferentes ofertas, uma cidade capaz de atrair e formar novos profissionais, uma cidade, em suma, que tem coisas a dizer e a apresentar ao exterior. Ou podemos ser, pelo contrário, uma cidade conformada, onde se reduzem os agentes culturais locais ao miserabilismo das tesourarias públicas, onde a Câmara Municipal se assume como principal programador e onde se condena o público a assistir a fórmulas pré-compradas, incaracterísticas e inconsequentes.
Pela nossa parte, a escolha é clara.

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